“Conceitos” (Fantasmão)

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ANÁLISE ESTÉTICA DE FONOGRAMA “CONCEITOS” DA BANDA FANTASMÃO (2008)

Por Jad Ventura 

O pagode, por toda sua trajetória e ancestralidade, é movimento, resistência e principalmente gênero pop. Esse texto tem como objeto a música Conceitos, canção da Banda Fantasmão presente no álbum Pluralidade de 2008. Este texto faz uma análise estética desta música, tendo como referência o método Universo Percussivo Baiano (UPB), criado pelo maestro Letieres Leite, e ainda, problematiza a letra junto a outros dados estatísticos a fim debater as questões sociais e raciais mediadas pela estética colocada pelo Grupo Fantasmão. Este trabalho é resultado de uma pesquisa sobre o Samba da Bahia entre 1980 e os dias atuais, realizada sob coordenação da professora Anne Rodrigues.

A obra Conceitos é de autoria de Matheus Pereira Machado e Edcarlos da Conceição Santos, este último, conhecido pela maioria por EdCity; ex cantor da banda Fantasmão. Nascido em Pojuca-BA no dia 4 de Novembro de 1982, Ed fez sucesso em Salvador em 2004 com a banda Parangolé, com músicas como Baculejo, Pica Pau e Ai Delicia. Em 2006, ele inicia a banda Fantasmão e fixa um marco na história do pagode baiano, misturando elementos visuais, sonoros e filosóficos.

Com o lançamento de Pluralidade em 2008, o Fantasmão amplia o horizonte para o que poderia ter em um disco de pagode baiano. O nome do álbum imprime muito bem a ideia passada pelas letras do disco e a estética adotada. O contexto histórico no qual o disco foi produzido simboliza a sonoridade criada, seja pela produção musical de Paulo Batera que já fazia no Psirico experimentações com a bateria de pagode influenciada pela música pop americana, seja pelas letras de afirmação da jovem negritude periférica de Salvador como denuncia as violências sofridas. Como disse Paulo Batera, produtor e arranjador musical do álbum, na entrevista concedida para esta pesquisa, “O disco não foi pensado para ser pagode, o disco foi pensado para ser pop. Toda a sonoridade que experimentamos, buscava ir além do que já estava sendo feito. Utilizamos tamanhos de surdos mais versáteis, de 20 e 24, por exemplo, que não são comumente usados no pagode. Na mix, fomos atrás de referências como Cazuza, Kiko Zambianchi e Tower of Power, descobrindo exatamente a pluralidade que estávamos nos propondo a fazer.”

O repertório da obra é recheado de críticas sociais e letras de mensagem, referente ao cotidiano da população preta e periférica. Ed interliga os guetos do Brasil, pois as violências diárias que sofremos, como na repressão policial e o olhar do segurança do supermercado, são fatos que nos atingem diariamente. Essas letras associadas a referências ancestrais imprimem uma estética própria dos sujeitos que escutam e produzem esta musicalidade. A diversidade de sonoridades encontradas em todo o percorrer das músicas do disco nos faz andar pelo reggae, forró, rock, rap e música sacra afrobaiana. O som produzido utiliza também compassos ímpares como o 7/4 logo na introdução da música O Mal Contamina. O Fantasmão diminuiu o BPM (Batidas por Minutos) das músicas de pagode, mantendo todo o swing da clave, e assim nasceu o Groove Arrastado. Estes atravessamentos estéticos, sociais, raciais, ancestrais e tecnológicos fazem do álbum Pluralidade um disco homônimo no qual o pagode baiano se encontra com o pop.

A banda do Fantasmão, na gravação desse disco, era formada por Edcity na voz, Dalmo Cavaduras na bateria, Gabriel Rangel (Quella) e Darlan Cavaduras nas percussões, Tony Bass no Baixo, Netinho Sisal e Salsicha nas guitarras, Aline Barreto, Lázaro Ojuara e Eddie Marochi nos Backings, Paulo Batera nas produções musicais e Carlos Eduardo como técnico de som.

A clave do pagode tem origem na clave do Cabila ou Cabula, nesta encontramos notas um pouco diferentes, mas nas acentuações identificamos suas similaridades. Logo abaixo é possível observarmos as duas claves. A clave do pagode eu mesmo escrevi e a do Cabila foi retirada do Livro Rumpilezzinho Laboratório Musical de Jovens – Relatos de uma Experiência do maestro Letieres Leite. Importante lembrar que a notação musical europeia não é capaz de contemplar a circularidade das claves, portanto, sua escrita é mera tentativa de exemplificar a prática a partir de linguagem utilizada de modo geral.

Utilizando a escrita musical europeia para descrever as notas nas claves, ao observarmos a comparação entre as duas identificamos a inversão do Cabila no terceiro tempo como mais próxima da clave 1 do Fantasmão. Logo no início temos as pausas, no Cabila pausa é de semicolcheia, e no Fantasmão a pausa de colcheia seguidos de uma nota em colcheia. Os acentos de similaridades estão no contratempo do tempo 1 e no contratempo do tempo 2, nas notas de colcheia e semicolcheia. A clave do Fantasmão, o Groove Arrastado, na música Conceitos é encontrada mais facilmente no instrumento Bacurinha.

A Identidade Visual da banda também recheia a ideia do Fantasmão. As caras pintadas com a cor branca, denunciam as “Black Faces”, que são sátiras utilizadas por comediantes brancos disseminando racismo. O grupo se apresenta com a mortalha, que “[…] surgiu em meio ao louco final dos anos 60. Era uma fantasia prática, barata e irreverente, contrapartida a tantos “caretas” que ainda povoavam um carnaval moldado   estilo europeu”. Desta forma, o Fantasmão traz uma estética visual diferente daqueles que não se enxergam dentro desse eurocentrismo proposto nos antigos carnavais. O que podemos observar é que a banda Fantasmão faz um debate social através não somente do som, mas também pela identidade visual, denunciando o preconceito racial do Brasil. Analisa os problemas sociais dos guetos brasileiros e gera conhecimento através da arte. Se transformando em alicerce que costura os fios da ancestralidade, sendo e cultuando a representatividade.

A letra de Conceitos (2008) logo no início canta “Com um conceito renovado andará nossa nação/Eu sou filho de preto, quero respeito, quem mora no gueto não é ladrão/” e faz uma discussão do que precisa ser renovado no país. Quais conceitos estereotipados um morador do gueto e filho de preto carrega? Violência, drogas, armas e morte. Assistimos nos programas policiais sensacionalistas os absurdos cometidos pelo Estado, e a manipulação midiática para alocar a favela como espaço gerador exclusivo de violência, barbárie e caos. Ed subverte estas prerrogativas se colocando como exemplo, de artista, de escritor, de preto, de favelado, e principalmente, como cidadão digno de direitos e respeito. São os pais, os filhos, os pensadores, os estudiosos e os agentes da mudança deste país.

Depois de exigir respeito e dizer que favelado não é ladrão, EdCity agora faz referência às vivências dos guetos de Salvador na passagem da música: “Na favela, lá no morro./No Lobato, na Fazenda Coutos/No Retiro, quem atirou?/Eu quero saber quem pintou o/Castelo de Branco/”.  Esse recurso linguístico espacial aproxima e empodera o seu público alvo, que somos nós moradores de favela. Na passagem “Quem atirou?” ele provoca a sociedade a refletir sobre o genocídio das populações negras. A violência que atinge as populações pretas e pobres nas favelas, tem influência direta do Estado. O crescimento veemente da mortalidade da juventude negra é a prova disso.

No Brasil, os casos de homicídio de pessoas negras (pretas e pardas) aumentaram 11,5% em uma década, de acordo com o Atlas da Violência 2020, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).  Ao mesmo tempo, entre 2008 e 2018, a taxa entre não negros (brancos, amarelos e indígenas) fez o caminho inverso, apresentando queda de 12,9%. 

Na última metáfora dessa estrofe “[…]Eu quero saber quem pintou o/Castelo de Branco/” o cantor faz um jogo de palavras com um bairro periférico de Salvador, o Castelo Branco. Esse recurso linguístico problematiza quem são os sujeitos e agentes da história com a pergunta, “Quem pintou?”. Desta maneira, EdCity reivindica o protagonismo de nós pessoas negras na construção deste país. Quais povos foram feitos de mercadorias e escravizados nesse processo? Quais populações formataram a chamada Música Popular Brasileira? Quem são as pessoas que edificaram a nação? Qual a cor da pele destas pessoas? Então, para responder todas estas perguntas e entender a questão que Ed nos coloca, “Quem pintou o/Castelo de Branco” fomos nós, forçados, não pagos, socialmente não aceitos sob jugo da dominação colonial, mas que conseguimos criar dentro da adversidade pesquisadores, intelectuais, artistas; cidadãos.

O Fantasmão depois de tantos anos segue sendo uma banda atual, que dialoga com sua ancestralidade. Atualmente a nova geração dos pagodes baianos, traz essa influência como a banda Afrocidade, que busca o novo juntamente com suas raízes.

A estética é um conceito muito discutido pela filosofia de modo geral, e tenta compreender a natureza da arte. Aqui analisamos esta canção em termos técnicos, históricos, subjetivos e sociais, a fim de entender a pluralidade da sociedade brasileira a partir de uma obra que já pelo seu título se propõe a ser diversa. Conceitos é um apanhado de vivências, um lugar de fala que o narrador tem total convicção do espaço que ocupa, como morador, artista e intelectual. Seu papel na quebra de paradigmas é fundamental para um amanhã melhor, mais consciente e com mais auto estima para os seus iguais que estão à mercê de tantas violências por tantos anos.

Continuaremos a renovar estes “Conceitos” tortos que são atribuídos a nós até conseguirmos o respeito devido, até que parem de nos matar, até que possamos existir enquanto cidadãos de direitos. A chacina do Cabula não será esquecida, a Chacina da Candelária não será esquecida, A chacina do Jacarezinho não será esquecida. Mestre Moa do Catendê vive. Marielle Franco, presente. Scank jamais será esquecido. Somos arte, transcendemos a carne.